29 maio 2014

ó mãezinha, eu hoje nao choro!

...como fazia bem tomar banho de mar de manhãzinha, para termos menos gripes no Inverno, lá íamos nós, bem cedinho até à praia.
Naquele dia resolvi que não ia chorar quando o "banheiro" nos desse os 3 mergulhos forçados no mar.
Entao quando a minha mãe nos estava a arranjar em casa, eu comecei com uma lenga-lenga: "ó mãezinha, eu hoje nao choro!" "ó mãezinha, eu hoje nao choro!" devo ter dito o mesmo mais de 20 vezes.
O pior foi quando ao dobrar a esquina da rua se viu o mar: fiz outra vez semelhante berreiro que só parou como de costume, quando a minha mãe nos serviu o leitinho quente com cevada, levado na garrafa termos e o pãozinho com manteiga e aquele "banheiro" já estava bem longe...


05 abril 2014

A Moleirinha









A Moleirinha


Pela estrada plana, toc, toc, toc
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc

A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toc, toc, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o,  toc, toc, moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toc, toc, toc, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

Toc, toc, toc, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.

 Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toc,  toc, toc,  e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toc, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...

Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!

Toc, toc, toc, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!

Toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toc, toc,  é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
 Toc, toc, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toc, toc, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!


(Guerra Junqueiro)