21 julho 2016

A Páscoa

(este texto foi escrito pela minha irma mais nova)

A Páscoa

O cheiro a fresias dilatava-me as narinas. Nos canteiros da Titia, espalhados pelas escadas e pelo corredor ladeado de flores, procurava os primeiros rebentos. Quando encontrava ficava deleitada. Inigualável aquele perfume. Fresco e suave, nostálgico até – jamais terei palavras para o definir.
Era o prenuncio da primavera e a Páscoa estava ali ao virar da esquina.
Primeiro vinha o Domingo de Ramos.
Neste dia levávamos à igreja um ramo com alecrim e oliveira para ser benzido no fim da missa das 10,00H.
Tudo era programado atempadamente.
A casa era limpa a fundo para receber a visita do compasso.
Cortinas, reposteiros, janelas… tudo era passado a pente fino.
As carpetes e tapetes eram lavados no grande tanque e o chão depois de minuciosamente esfregado era encerado. Quando a cera secava puxava-se o lustro. Ficaria lindo. O corredor brilhava logo de manhã quando entrava luz pelo quarto do Dito.
Havia ainda as cerimónias religiosas a que era obrigada a ir.
Nunca lhes achei muita graça, eram deprimentes, isso sim. Contudo, devo referir aqui dois aspectos que sempre me cativavam: as vestes cor de lilás e o cheiro a incenso.
Às 15,00H da Sexta-feira Santa deveríamos todos fazer um minuto de silêncio (às vezes emitia um som, muito baixinho, só para ver se me acontecia algo. Bah, continuava inteirinha, nada de novo acontecia. As minhas tranças continuavam no sitio, os meus joelhos esmurrados e o estúpido som das galinhas a cacarejar entrava pela casa.
Bom, passemos à parte que eu mais gostava: a cozinha. Adorava participar nas tarefas culinárias. A Ró batia as claras, a Lena e eu mexíamos as gemas com o açúcar e até o Dito ajudava na confecção dos cocos. Talvez por ser a mais velha cabia à Ró a tarefa de amassar o preparado para as bolinhas de chocolate. Invejava-a. Aquela tarefa deveria ser minha. Vá-se lá saber porquê mas nunca enjoava doces. (era quase obrigatório fazer-se: bolas de chocolate, quadradinhos de chocolate – feitos com a receita do bolo de noiva – bolo de coco, pudim francês, bolo de prata, bolinhos de coco, pão-de-ló, bolo de mármore, bolo mulato – conhecido entre irmãos pelo bolo leitoso – rolo recheado de geleia e talvez mais algum que não me ocorre agora).
Havia também regueifa da Páscoa, aliás havia sempre variadíssimos pedaços de regueifas da Páscoa, a mãezinha gostava de ter várias “amostras” da mesma. Tinham um sabor muito característico, talvez com um toque de Vinho do Porto.
Uma vez o paizinho e a Lena atreveram-se a fazer regueifa. Estava tão boa, mas tão boa aquela massa. Lindas! Ainda as vejo, por cozer, dispostas na mesa com tampo de mármore que havia na cozinha, já pinceladas de ovo e prontas para irem ao forno. Foi pena não terem desenvolvido. Conforme entraram, conforme saíram. Eram assim tipo umas regueifas anãs. Deu para rir apesar de todos lamentarmos o seu fraco, ou nenhum, crescimento. Porem, devo dizer que nunca comi regueifa tão boa.
A sala de jantar era preparada de véspera para a visita pascal.
A mesa grande era trocada por uma mais pequena para dar espaço à circulação do compasso. A “toalha da Páscoa”, imaculadamente branca, era então colocada.
No centro havia uma floreira em vidro, de cor salmão, com algumas flores e os verdes benzidos no anterior Domingo.
Havia os pratinhos rendilhados onde se colocavam amêndoas. Num deles ficava uma laranja golpeada com o folar para o padre. Noutro um pouco maior aparecia o Vinho do Porto e os cálices. Parte dos bolos eram cortados em fatias e dispostas em pratinhos. Lamentavelmente só podíamos comer os doces, depois do compasso passar.
Devo confessar que na noite Sábado para Domingo eu esgueirava-me até à porta da sala, fechada a sete chaves, e deliciava-me com bolinhas de chocolate. Não sei se alguém reparava, mas ficavam em numero idêntico ao que encontrava à entrada, só que um pouco mais pequenas.
Por fim vinha a excitação da entrada do compasso. A parte mais irritante era eu ter que beijar a cruz. Tentava sempre pôr a boca de lado para não lhe tocar – de relâmpago passavam-me sempre pela frente milhares de bocas sem dentes e de hálito suspeito.
Sobre o compasso, recordo ainda o som da sineta a aproximar-se (claro que às vezes era o simples sino que havia lá em casa e que alguém se lembrava de enganar a mãezinha, que toda aflita se aprontava de imediato a dizer: Eduardo, olha os verdes!!!! Espalha os verdes à porta!!!)

Para os meus pais e para os meus irmãos,
Com carinho
a.


(a última Páscoa em Cesár)

18 julho 2016

cresci

...naquela noite,  quando me meti debaixo da mesa da sala de jantar como habitualmente fazia, enquanto a titia ia à cozinha buscar a sopa, estava longe de imaginar que ao levantar-me iria bater com a cabeça no tampo.

a partir dessa data comecei a ter que me esconder de joelhos: tinha crescido e ninguem me avisou!

25 maio 2016

A Olguita

(texto da minha irmã mais nova)

A Olguita

Saíamos sempre, ao domingo. Afinal, morávamos numa cidadezinha turística.
Mesmo durante a semana, não era estranho irmos até à beira-mar, onde o picadeiro enchia na zona de verão.
A música tocava na Av. 8, emitida a partir de uma cabine de som. Scott Mckenzie convidava-nos a partir até S. Francisco ao lado de uma Gigliola Cinquetti que jurava a pés juntos "Dio como ti amo".
Roberto Carlos, entre outros estava no auge.
Um dia rezei para que ele me viesse buscar. Não disse nada a ninguém, para não dar azar e esperei por ele. De certeza que esperei sentada, caso contrário tinha feito varizes pelo corpo todo.
Nunca íamos com qualquer roupa para o picadeiro.
Quer de Inverno quer de Verão, deveríamos vestir a rigor. Mas no Verão era tudo mais bonito. Pelo Sol e pela roupa mais alegre.
Muitas vezes ía para Cesár passar as férias e "os" de lá vinham para cá.
A Fatinha, a Nené e a Olguita eram visitas assíduas na época balnear.
Traziam sempre imensos víveres, além da bagagem pessoal.
Lembro-me da bagagem da Olguita. Era sem dúvida a maior – digna de uma actriz de cinema.
- Para que queres essa porcaria toda? - perguntava eu?
- Nem é muita coisa…
Eu olhava para aquelas malas……Era cintos diferentes para cada toilette, sapatos, lenços, blusas, casacos…para não falar nos cremes. Para o Sol, para o dia, para a noite, para as rugas... credooooo - pensava eu, que passava bem com as minhas calças de ganga.
Antes de sairmos ela escovava 50 vezes o cabelo para ficar a brilhar. Tinha que esperar sempre por ela.
Depois…depois…valia a espera.
Orgulhava-me que todos olhassem para ela.
Orgulhava-me de a ter como prima.

a.

(para a Olguita, com todo o meu carinho)



25 abril 2016

Dia D

(mais um texto da caçulinha) 

Dia D

Era um prazer a visita da D. Angelina. 
Foi triste quando ela foi morar para Coimbra, mas a Alicinha tinha sido colocada em Coimbra para o estágio de medicina e seria tudo mais fácil. Agora me lembro, a Alicinha costumava sentar na cama o esqueleto, que lhe servia de estudo. 
A D. Angelina tinha uma voz muito agradável, e era uma boa contadora de histórias. Deliciava-me a ouvir episódios ora de Lisboa, ora de Carcavelos e até da Maria do Mar, filha de uns amigos lá de Lisboa. 
Gostava de ir a casa dela. Tinha uma gaiola, para mim gigantesca, cheia de periquitos. Era de um formato cilíndrico e terminava em cone. Encantava-me os sons daqueles pássaros. Ah, lembrei -me agora da vasta colecção de caixa de fósforos do Sr. Mário. Muitas delas tinham sido trazidas das colónias enquanto prestava serviço militar. 
Graças a ela, os estufados passaram a ser feitos num relativo curto espaço de tempo, com a introdução da panela de pressão. A mãezinha rendeu-se ao efeito mágico deste utilitário doméstico. Ficou tudo muito mais simples, se bem que de vez em quando fosse necessário dar um jeitinho à tampa da panela para a mesma funcionar. 
Às vezes vinha passar uns dias lá a casa e, se o sr. Mário estivesse de serviço viria ter com ela no fim de semana. Eram dias de azáfama doméstica diferente. 
Tinha chegado há dois dias. 
Quando acordei preparei-me para a escola e enquanto tomava o pequeno almoço, fui surpreendida por um burburinho. Algo se passava. Estava tudo com o ouvido colado ao rádio. 
- D. Helena, vou fazer as malas e parto no próximo comboio. Não sei se ele estará bem – o sr. Mário tinha o posto de major, e ela receava por ele 
Entretanto o paizinho, que já tinha saído há muito, voltou a casa e disse: 
- Nada de ajuntamentos. Se virem ajuntamentos afastem-se. 
Eu queria compreender a situação. Sabia que tinha havido uma revolução, mas nada mais sabia. 
Na escola foi-nos explicado o que se passava por uma professora: 
- Portugal vivia num regime fascista. Só havia uma opção política e quem fosse contra era torturado e preso. Ao longo destes dias, ser-vos-á explicado melhor, quer em casa, quer aqui na escola. Podem sair. Podem ir para a rua para comemorarem a Liberdade. 
Não se metam em confusões. Ser livre não é fazer tudo o que queremos. Não temos direito de ir contra a liberdade do outro. Temos o direito a partir de agora de lutarmos pelos nossos ideais. Não estranhem se virem alguns dos vossos professores, pelas ruas de Espinho gritando liberdade. Eu vou estar lá. 
Nada voltou a ser igual. 
Um dia o meu filho perguntou-me como era Portugal antes do 25 de Abril. 

Respondi: era a preto e branco 

Para os meus irmãos, 
Com carinho 
a.