15 agosto 2020

o feriado de 15 de Agosto*

 
O feriado de Agosto era dia de festim na praia.
Diz a Ró, nas suas crónicas via sms, que se alugava uma barraca por 10$00/diários. Não me recordo dessa parte, pois claro que não, os nove anos de diferença distanciam-nos um pouco desses pormenores.
A minha memória dos dias 15 de Agosto, leva-me a dias felizes onde transbordava de inocência e não sabia ainda o preço de uma barraca de praia.
Para mim, estarmos todos juntos era simplesmente delicioso. Jogávamos à bola, ao prego, às cartas e também fazíamos "bolinhos" de areia molhada. Fazia sempre um monte de areia, com a Lena, ao qual cavava um túnel e lhe fazia uma chaminé. Com sorte, haveria de sobejar alguma folha sem interesse do jornal do paizinho e o mesmo, depois de a amachucar colocava-a no túnel e pegava-lhe fogo. E, para nosso fascínio, nascia um vulcão.
A água estaria sempre estupidamente gelada, mas era um culto saboreá-la antes do almoço e antes do lanche. A cor das bandeiras ditavam a quantidade de corpo a ser molhado, em caso de sobressair a vermelha, apenas os pés tinham direito a banho.
Esse dia foi sempre comemorado com um almoço preparado em casa.
Lembro-me das vésperas em que se fazia um bolo, que eu gulosamente cobiçava mas com muita pena minha ouvia logo a voz materna:"é só para amanhã". Cozia-se e desfiava-se ainda o bacalhau para a preparação dos sonhos do mesmo. Esta confecção era feita à noitinha. às vezes também se fazia coelho assado mas a minha memória passa apenas pelo delicioso arroz de frango feito de manhã cedo e devidamente embrulhado em papel de jornal, os sonhos de bacalhau e a salada de feijão verde e cenoura. Sei que bebia groselha ao almoço e à tarde lanchava leite quente com café, pão com marmelada e o resto do bolo.
Como a Ró hoje referiu, era sempre um dia em cheio.

(para os meus pais e irmãos, que me ajudaram a crescer, para o meu rebento e  para as minhas sobrinhas,  com todo o meu carinho
 - 15/8/2014)

Texto da minha irmã Ana

29 maio 2019

Mães de antigamente

MÃES  DE  ANTIGAMENTE

Coisas que a nossas Mães diziam e faziam...
Uma forma que hoje é condenada pelos educadores e psicólogos, mas funcionou com as gerações anteriores.
Talvez se não tivessem mudado tanto, o nosso mundo estivesse melhor...

 Minha  Mãe ensinou-me a VALORIZAR O SORRISO...
"RESPONDE-ME DE NOVO OU LEVAS NOS DENTES!"
 A Minha Mãe ensinou-me a RECTIDÃO.
"EU ENDIREITO-TE NEM QUE SEJA PRECISO UMA CARGA DE PORRADA!"
 A Minha Mãe ensinou-me a DAR VALOR AO TRABALHO DOS OUTROS...
"SE TU E O TEU IRMÃO SE QUEREM MATAR, VÃO PARA A RUA. ACABEI DE LIMPAR A CASA!"
A Minha Mãe ensinou-me LÓGICA E HIERARQUIA.
"PORQUE EU DIGO QUE É ASSIM! PONTO FINAL! QUEM É QUE MANDA AQUI?!"
A Minha  Mãe ensinou-me o que é MOTIVAÇÃO...
"CONTINUA A CHORAR QUE EU VOU DAR-TE UMA RAZÃO VERDADEIRA PARA CHORAR!"
A Minha Mãe ensinou-me a CONTRADIÇÃO...
"FECHA A BOCA E COME!"
A Minha Mãe ensinou-me sobre ANTECIPAÇÃO...
"ESPERA SÓ ATÉ  O TEU PAI CHEGAR A CASA!"
A Minha Mãe ensinou-me sobre PACIÊNCIA...
"CALMA!... QUANDO CHEGARMOS A CASA VAIS VER ..."
A Minha  Mãe ensinou-me a ENFRENTAR OS DESAFIOS...
"OLHA PARA MIM! E RESPONDE QUANDO EU TE FIZER UMA PERGUNTA!"
A Minha  Mãe ensinou-me sobre RACIOCÍNIO LÓGICO...
"SE CAIRES DESSA ÁRVORE VAIS PARTIR O PESCOÇO E EU AINDA TE DOU UMA SOVA!"
A Minha Mãe ensinou-me MEDICINA...
"DEIXA DE REVIRAR OS OLHOS MENINO! PODES APANHAR UMA CORRENTE DE AR QUE TE VAI DEIXAR VESGO PARA TODA A VIDA."
 A Minha Mãe ensinou-me sobre o REINO ANIMAL...
"SE NÃO COMERES ESSAS VERDURAS, OS BICHOS DA TUA BARRIGA VÃO COMER-TE A TI!"
 A Minha Mãe ensinou-me GENÉTICA...
"ÉS IGUALZINHO AO TEU PAI!"
A Minha Mãe ensinou-me acerca das minhas RAÍZES...
"JULGAS QUE NASCESTE NUMA FAMÍLIA RICA, É?"
 A Minha  Mãe ensinou-me sobre a SABEDORIA DE IDADE...
"QUANDO TU TIVERES A MINHA IDADE, VAIS ENTENDER, MAS JÁ SERÁ TARDE DEMAIS."
 A Minha Mãe ensinou-me sobre JUSTIÇA...
"UM DIA TERÁS FILHOS, E ELES VÃO FAZER CONTIGO O MESMO QUE TU FAZES COMIGO! AÍ VAIS VER O QUE É BOM!"
 A Minha Mãe ensinou-me RELIGIÃO...
"REZA PARA QUE ESSA MANCHA SAIA DO TAPETE!"
 A Minha Mãe ensinou-me o BEIJO DE ESQUIMÓ...
"SE VOLTAS A ESCREVER AÍ DE NOVO, EU ESFREGO O TEU NARIZ CONTRA ESSA PAREDE!"
 A Minha  Mãe ensinou-me CONTORCIONISMO...
"OLHA SÓ ESSA ORELHA! QUE NOJO!"
 A Minha Mãe ensinou-me  DETERMINAÇÃO...
"VAIS FICAR AÍ SENTADO ATÉ COMERES A COMIDA QUE TENS NO PRATO!"
 A Minha Mãe ensinou-me habilidades como VENTRÍLOQUO...
"NÃO RESMUNGUES! CALA ESSA BOCA E  DIZ-ME POR QUE É QUE FIZESTE ISSO?"
 A Minha Mãe ensinou-me a SER OBJECTIVO...
"EU CORRIJO-TE DE UMA SÓ VEZ!
A Minha Mãe ensinou-me a ESCUTAR ...
"SE NÃO BAIXAS O VOLUME, EU VOU AÍ E PARTO ESSE RÁDIO!"
A Minha Mãe ensinou-me a TER GOSTO PELOS ESTUDOS...
"SE EU FOR AÍ E NÃO TIVERES TERMINADO A LIÇÃO, VAIS VER O QUE É BOM!
A Minha  Mãe ensinou-me a COORDENAÇÃO MOTORA...
"AGORA ARRUMA TODOS OS BRINQUEDOS!! APANHA UM POR UM!!"
A Minha Mãe ensinou-me os NÚMEROS...
"VOU CONTAR ATÉ DEZ. SE ESSE VASO NÃO APARECER AINDA LEVAS UMA SOVA!

O b r i g a d a   M ã e ! ! !

O baloiço do Mato d'Arca


Mas porque será que esta imagem me faz lembrar um baloiço que havia em casa da Vovó de Cesár, na "loja", onde tantas vezes andei?


28 maio 2019

Biblioteca Itinerante

Hoje trago à memória a Biblioteca Itinerante, da Fundação Calouste Gulbenkian , que durante muitos anos percorreu o país de lés-a-lés, especialmente em aldeias e vilas onde o acesso aos livros e à leitura era inexistente.
Não pretendo aqui fazer a história deste fantástico serviço, até porque há locais onde isso já é feito, como neste sítio, por exemplo, e pela Internet não faltam referências ao mesmo. Apenas de referir que o serviço foi criado pelo administrador da Fundação, Branquinho da Fonseca, em 1958.

O que quero recordar de modo especial é que a visita da Biblioteca Itinerante ao largo da minha terra acontecia uma vez por mês ou de 15 em 15 dias, sempre num dia certo, que agora não recordo, mas tenho ideia de ser a uma quarta-feira, sempre a meio da tarde, e que eu frequentei durante a década de 60. Sei que depois continuou por mais alguns anos, acabando por terminar talvez no início dos anos 90. Sei também que oficialmente o serviço durou de 1958 a 2002. Durante esse período adquiriu cerca de cinco milhões de livros (de todos os géneros) e fez 97 milhões de empréstimos. Os serviços foram então entreguesas às autarquias que serviam.

São inesquecíveis as recordações da chegada da Biblioteca Itinerante, com a sua carrinha enigmática, o modelo Citroen HY (fabricado entre os anos de 1947 a 1981), que só por si irradiava uma magia fascinante. A que vinha à minha terra era de cor cinza (mais ou menos igual à da última imagem). Tinha duas portas na parte traseira que se abriam de par-em-par e uma parte superior que abria para cima, para dar acesso ao fantástico mundo dos livros, da leitura e do fascínio das histórias e das imagens. Essa aura de reino maravilhoso era reforçado pelo tipo de leitura dos primeiros anos, onde preferencialmente eu escolhia livros de contos de fadas, repletos de reinos, reis, rainhas, princesas, gigantes, anões, fadas, feiticeiras e todo o resto da família de seres que povoam o imaginário infantil.

Aos poucos fui deixando as histórias infantis e mergulhei em livros sobre a fauna e flora, repletos de ilustrações maravilhosas e muitos outros livros sobre a terra, a história, as artes e as ciências, romances, a colecçao inteirinha do Julio Verne, etc.
Recordo ainda que aguardávamos pelo dia da visita da Biblioteca Itinerante com justificada impaciência. Todos queriam ser os primeiros a ser atendidos para melhor escolher. 
Lembro-me que eram dois os senhores que acompanhavam a Biblioteca, sendo um o motorista e o outro o encarregado ou revisor, o que anotava as devoluções e as requisições.
Não tenho a certeza quanto ao número de livros que se podia requisitar, mas creio que eram cinco.

Quantas vezes eu fui a esta biblioteca, e arranjava todas as desculpas e mais algumas para levar para casa os livros todos q queria: era em nome da minha mae, da minha tia e dizia q tambem eram livros para os meus irmaos.
Que monte de livros eu levava, alguns metidos numa saca de pao (de pano pq na altura ainda nem se sabia o q era plastico) escondidinhos para ler em casa dos meus tios, enquanto jantava, q eu lá sempre tinha mais liberdade para isso.
Em minha casa podia ler, mas com "conta, peso e medida" e apagava-se cedo a luz, e tambem havia trabalhitos a fazer.
Mas eu era feliz, nao me faltava nada, até tinha livros de historias para ler: a "pousada do anjo da guarda", "o general dourakine", "os desastres de sofia" toda a colecçao azul INTEIRINHA, eu vivia "dentro" dos livros...

Por tudo isto, toda a malta da minha geração tem uma profunda memória e admiração pelo serviço da Biblioteca Itinerante, já que graças a ele viajámos no tempo  por reinos maravilhosos, com histórias fascinantes e aprendemos coisas do mundo que nos rodeia. Enfim, crescemos ajudados por tudo quanto aprendemos através dos livros que num momento mágico chegavam ao largo da aldeia naquelas carrinhas maravilhosas.




10 maio 2019

Um crime do Estado Novo esquecido ha 55 anos


Um crime do Estado Novo esquecido ha 55 anos

A Igreja queria transferir o jovem padre de Lourosa. As mulheres da terra não deixaram. No dia 14 de Outubro de 1964, centenas de GNR cercaram a aldeia, mataram duas jovens e feriram mais 20 e Lourosa ficou com a fama de «antro de comunistas».

Pelas 11h00 da manhã do dia 14 de Outubro de 1964, centenas de soldados da GNR, muitos deles armados com metralhadoras, cercaram a aldeia de Lourosa, no concelho de Santa Maria da Feira. Traziam consigo várias ambulâncias, indicando que se preparavam para um confronto potencialmente violento.
Que ameaça representava a pequena povoação de Lourosa, já então conhecida pelas suas fábricas corticeiras, para que o regime tenha montado uma tão gigantesca operação repressiva? Na verdade, nenhuma. A população desejava simplesmente conservar o seu padre, que a hierarquia da Igreja pretendia transferir. Durante algumas semanas, as mulheres de Lourosa organizaram uma vigília permanente, 24 sobre 24 horas, para garantir que ninguém lhes levava o seu pároco. Faziam turnos, com a conivência dos patrões das fábricas, que as deixavam largar o trabalho, e do próprio presidente da junta de freguesia.
Tudo começara no ano anterior, quando o jovem padre Damião, de 26 anos, viera para Lourosa coadjuvar o velho sacerdote da freguesia, Benjamim. Com a morte deste último, em Junho de 1964, Damião assumiu a paróquia, para contentamento da população, que gostava deste padre que visitava as fábricas e só cobrava honorários por baptizados, casamentos ou missas fúnebres a quem tinha meios para os pagar.
Um dia, por meados de Setembro, chega a Lourosa a notícia de que o administrador apostólico do Porto, Florentino de Andrade Sousa, que substituía o então exilado bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, ordenara a transferência de Damião. A população não se conforma. Começa então um braço-de-ferro com as autoridades eclesiásticas, que irá ter um desfecho sangrento a 14 de Outubro, no mesmo dia em que Martin Luther King, de quem poucos habitantes de Lourosa teriam então ouvido falar, recebia o Nobel da Paz.
Por motivos difíceis de explicar, poucos souberam desta matança, nem sequer depois do 25 de Abril de 1974. Mas não restam dúvidas de que a GNR matou duas mulheres, nenhuma delas, aliás, envolvida na vigília, e que baleou mais umas 20, que seriam depois transportadas para os hospitais do Porto.
Margarida Santos, uma das alvejadas, passou três meses no Hospital de S. João. Conta que saiu à rua por curiosidade, a ver o que se passava, e que foi apanhada pelo tiroteio da GNR. Assistida pelo marido, que a acompanhava, foi depois transportada para o Porto e conseguiu sobreviver. Ainda teve tempo de ver tombar perto de si a sua conterrânea Maria de Lurdes de Oliveira, de 17 anos, que teve menos sorte e foi mortalmente atingida. Caiu junto a umas alminhas, onde ainda hoje algumas pessoas da terra, a cada 14 de Outubro, vão colocar velas e rezar.
A algumas centenas de metros, noutro dos muitos caminhos que iam dar à igreja, todos eles barrados pela GNR, Rosa Vilar da Silva regressava a casa, vinda do trabalho. Foi alvejada na cabeça e teve morte imediata. Faria 21 anos no mês seguinte e estava grávida. "A Rosa despegava às 11 e vinha todos os dias a casa fazer o comer", diz Maria Alice Cosme, hoje com 76 anos, garantindo que a vítima "nem sequer estava metida na vigília". Em 1945, tal como em 2009, o dia 14 de Outubro calhou a uma quarta-feira. Rosa ia casar-se no sábado seguinte.
O tiroteio, que se estendeu por toda a aldeia, durou duas ou três horas, até que, finalmente, a GNR partiu, levando consigo o padre. "Havia muita gente ferida, a tirar balas dos braços, da barriga", recorda Maria Alice. Uma bomba adormecida
Reconstituir com algum detalhe os acontecimentos do dia 14 de Outubro não é fácil. A imprensa daépoca não pôde noticiar o assunto e muitos dos habitantes de Lourosa que testemunharam a matança não querem reavivar, 45 anos depois, um episódio doloroso e que se esforçaram por enterrar. Acresce que praticamente ninguém terá tido uma perspectiva global do que estava a passar-se: cada um assistiu apenas ao que ocorreu no local onde se encontrava nessa manhã.
Na manhã de 14 de Outubro, Américo vinha a descer o caminho do Calvário, que ia ter ao largo da igreja. Dirigia-se à sociedade columbofila de Lourosa, cujo bar era gerido por um seu irmao. O pai de ambos tambem le estava, a dar uma ajuda ao filho. A associaçao ficava em frente à igreja e tinha paredes meias com o Café Central, que ainda hoje existe, mas que, na época, tinha um grande pátio à entrada.
Depois de ter estado algumas semanas no centro paroquial, guardado pelas mulheres da terra, o padre Damião tinha-se instalado, uns dias antes, na casa de uma senhora da aldeia, D. Altamira, que morava por cima do dito Café Central. A vigília mudara-se, pois, para o pátio do café.
Todo o dia e toda a noite, mantinha-se ali um grupo de mulheres, a quem a população trazia alimentos e bebidas. Quando havia alguma novidade a dar aos habitantes, ou se aparecia algum desconhecido a rondar nas imediações, os sinos da igreja tocavam a rebate e todas as operárias saíam das fábricas e acorriam ao local da vigília.
Américo vinha mandado pela mãe, que, ao ver passar a GNR em camiões militares, receou que o marido pudesse ter alguma reacção impensada. Mas, ao aproximar-se do largo da povoação, o rapaz encontrou, a tapar-lhe o caminho, "uns 20 ou 30 guardas, com grandes capacetes e armas aperradas". Como não podia passar, atravessou uns silvados e entrou pelas traseiras da casa onde o pai se encontrava. Este enfiou-o numa caixa, e foi dentro dela, sem poder assistir a nada - mas ouvindo "um grande tiroteio" -, que Américo viveu o seu 14 de Outubro. Quando finalmente as coisas se acalmaram e pôde sair, ainda viu, estendida no chão, Rosa Vilar da Silva, que fora alvejada ali perto. Não sabia ainda que Lurdes de Oliveira, filha de um primo do seu pai, tivera a mesma sorte.
Américo diz que a primeira coisa que a GNR fez foi deitar a mão ao homem encarregado de tocar os sinos, e congratula-se por isso, já que, doutro modo, centenas de operárias teriam saído das fábricas e a catástrofe poderia ter sido muito mais grave. Também nunca ouviu dizer que as mulheres tenham esboçado qualquer resistência, e está convencido de que não existia a menor motivação política por trás do movimento. Damião era um padre com uma atitude democrática, mas não constava que fosse do reviralho, como então se dizia.
Uma das mulheres que foram feridas no tiroteio, D. Dorinda, contou a Rosa Silva uma história um pouco diferente. Tinha 14 anos e, tal como Américo, já trabalhava na cortiça. Diz que ouviu tocar os sinos e que, por isso mesmo, saiu com as restantes trabalhadoras para ver o que se passava. Também elas encontraram a GNR a tapar o caminho e, ao que afirma, algumas mulheres atiraram-lhes pedras. Um dos guardas ausentou-se então para telefonar a pedir ordens, e, passado uns momentos, a população foi avisada de que, a partir daquele momento, os soldados atirariam a matar. Atingiram de imediato uma mulher nas pernas e impediram que lhe fosse prestado auxílio. Seguiu-se uma rajada de tiros e Dorinda foi apanhada pelo ricochete de uma bala, tendo acabado por ser assistida numa ambulância que já se encontrava no local.
Há também versões diferentes sobre a posição assumida pelo próprio padre Damião. Uns dizem que o padre tentou convencer a população a deixá-lo partir, garantindo que procuraria persuadir os seus superiores a permitir-lhe que voltasse. Mas, segundo Alice Cosme, Damião terá indirectamente contribuído para o movimento que se formou, ao, alegadamente, ter dito na missa que, "se as mulheres de Lourosa quisessem, ele não iria embora". Damião, actualmente pároco em Agrela, ainda é vivo e o seu testemunho poderia ser muito esclarecedor, masnão quer falar sobre o caso.
Hoje com idade muito avançada, está também vivo aquele que era, na época, o seu superior directo, o padre Julião Pires Valente, vigário de Paços de Brandão, que, nos dias imediatamente anteriores à tragédia, tentou falar com Damião na casa onde este se encontrava. Numa breve declaração a Rosa Silva, confirma a tentativa, mas diz que não chegou a sair do carro, porque se sentiu ameaçado - as mulheres batiam-lhe com os guarda-chuvas no tejadilho -, e que se limitou a informar da situação o bispo do Porto.
Enquanto durou a vigília, os habitantes de Lourosa foram várias vezes avisados de que estavam a pisar o risco e que poderiam sofrer consequências desagradáveis. Veiga de Macedo, que fora ministro das Corporações de Salazar e era natural da região, dava-se com vários industriais de Lourosa e, segundo Américo Teixeira, terá dito a alguns deles: "Olhai o que fazeis, que isto já cheira mal, já estais assinalados a vermelho como uma aldeia problemática."
Fora já este mesmo padre Julião que, mal se formara o movimento contra a transferência de Damião, requerera a intervenção das autoridades, segundo se depreende de uma nota que o Governo Civil de Aveiro fez publicar n"O Comércio do Porto, a 17 de Outubro: "A autoridade concelhia foi desde logo posta ao corrente dos acontecimentos pelo reverendo vigário do concelho, que solicitou a necessária intervenção policial." A nota adianta que, "depois do último convite à boa razão, a GNR procedeu à libertação do reverendo padre", e lamenta que, para responder "aos diversos ataques e às pedradas da população enfurecida", tenha tido de disparar "alguns tiros para o ar" e que, "na luta", tenham "aparecido duas mulheres gravemente feridas que, lamentavelmente, vieram a falecer".
Sujeita a censura, a imprensa não pôde dar outra versão dos acontecimentos, mas a história correu, tendo mesmo chegado às comunidades de emigrantes lourosenses no Brasil e na Venezuela. Já em Novembro, o Correio da Feira publicou uma pequena nota intitulada "Explicação", dando conta de que o jornal tinha recebido muitas cartas e telefonemas de "amigos e assinantes" de Lourosa, e também dos "filhos de Lourosa" no estrangeiro, estranhando que não tivesse sido feita "qualquer referência ao que de anormal ali ocorreu recentemente". O Correio da Feira garante que "sente profundamente o que ocorreu", mas sem a menor referência concreta à ocorrência em causa.
Houve, no entanto, um jornal que contou o essencial da história, embora não tenham sido provavelmente muitos os lourosenses que o leram. No seu número de Novembro de 1964, o Avante!clandestino inclui um artigo, com o título "Um crime premeditado", que abre assim: "Como é já do conhecimento geral, no passado dia 16 (a data correcta é 14), a vila da Lourosa foi atingida pela fúria do governo salazarista. O sangue inocente de duas mulheres e uma criança (possível alusão à gravidez de Rosa Vilar da Silva) e, segundo se afirma, de mais duas pessoas, e ainda de cerca de duas dezenas de feridos, alguns dos quais gravemente, correu nas ruas da laboriosa vila do concelho de Vila da Feira." E o texto prossegue: "Porquê tão nefando crime? Simplesmente porque a população desejava que lhe deixassem o padre da freguesia, que, em vez de transformar a paróquia em centro de exploração, se esforçava por ajudar os mais necessitados." O Avante! termina apelando à população de Lourosa que se mantenha unida "para exigir o castigo dos criminosos e para que sejam concedidas indemnizações às famílias das vítimas".
É natural que o PCP tenha divulgado um episódio que embaraçava o regime. Mas era uma luta de motivações religiosas e na qual não tinha tido qualquer influência, de modo que a imprensa do partido não voltou a referir o assunto, nem procurou transformar as duas vítimas mortais em mártires do fascismo.
No entanto, se ignorarmos a repressão nas colónias, foi um dos crimes mais bárbaros e despropositados do Estado Novo. O historiador Fernando Rosas, especialista no período, diz que, embora fossem frequentes os incidentes em que as populações resistiam à transferência de padres, não recorda nada com a dimensão deste caso de Lourosa, que desconhecia.
Mas, apesar de reconhecer a singularidade do episódio, e sublinhe o facto invulgar de ter sido a Igreja a solicitar a intervenção policial, lembra que se viviam então "anos de chumbo" e que se trata de "um período de grande repressão", que inclui "o assassinato de Humberto Delgado, o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores e a prisão de muitos estudantes, que, pela primeira vez, começam a ser torturados na cadeia".
Que os lourosenses, depois da repressão brutal de 14 de Outubro, se tenham calado, não surpreende. O que é bastante mais estranho é que, logo após o 25 de Abril, quando toda a gente recordava os crimes do salazarismo, a história tenha permanecido por contar. Há várias explicações possíveis: os anos que tinham decorrido, o facto de muitos protagonistas ainda estarem vivos - incluindo, porventura, os guardas que dispararam as armas que mataram Rosa e Lurdes -, ou mesmo o facto de Lourosa ter tido, durante o PREC, uma sucessão de padres "esquerdistas", que a população aceitou muito mal e dos quais pode ter querido esconder um episódio que, de algum modo, legitimaria o radicalismo ideológico que alegadamente levavam para o púlpito.
Em 1989, o lourosense José Lima editou um pequeno opúsculo, de tom assumidamente panfletário, no qual narra o essencial do que se passou a 14 de Outubro, mas o texto quase não teve divulgação, e mesmo na actual cidade de Lourosa serão poucos os que alguma vez o leram.
Alice Cosme diz que, muitos anos depois dos acontecimentos de 1964, os habitantes tinham ainda fama de "terroristas" e eram olhados de revés pelas populações das freguesias vizinhas. "Quando havia futebol em Lamas, os polícias que iam vigiar o jogo tinham de passar por aqui e, quando chegavam, como eram poucos, mantinham sempre as espingardas apontadas, com medo do povo."

05 março 2019

Cortina de Ferro


13 Agosto 1961 - O Muro de Berlim -  9 Novembro 1989

Entre 1945 e 1961, aproximadamente 3.6 milhões de pessoas deixaram Berlim da zona do Leste Soviético, causando dificuldades crescentes da liderança do SED, o partido comunista de Alemanha Oriental. A metade desta corrente constante de refugiados partiu via Berlim Oeste. Aproximadamente quinhentas mil pessoas cruzaram as fronteiras cada dia em ambas as direcções, permitindo comparar condições de vida dos dois lados. Em 1960 sozinhas, aproximadamente 360 000 pessoas fizeram um movimento permanente ao Oeste. A RDA esteve à beira do colapso social e economico.


No início da manhã do dia 13 de Agosto de 1961, num domingo, as barreiras temporárias foram levantadas nos limites de sector que separam Berlim do Leste e do Oeste, e as unidades de polícia e de transporte, junto com membros de milícias de "funcionários", montaram guarda e começaram a esticar rolos do arame farpado e nos dias seguintes construída uma parede de pedra sólida, por funcionários de construção de Berlim do Leste. Muitas pessoas foram desalojadas das suas casas já em 1961 – não só em Bernauer Strasse, mas também em outras áreas limítrofes.


Ha 58 anos foi construido o Muro de Berlim tambem conhecido pela "Cortina de Ferro". Claro que apenas tinhamos acesso ao que realmente interessava aos governantes da altura mas arranjava-se sempre um tempinho para ouvir rádio altas horas da madrugada para se ficar a saber mais alguma coisinha...





31 janeiro 2019

Carlos de Moraes

VENCIDOS

(Em memória dos mortos de 31 de Janeiro)

Glória aos que morderam,
Derrotados,
O ensanguentado pó das ruas!
Aos que verteram
Seu sangue generoso,
Humildes, ignorados,
Rasgando as pobres carnes nuas
De encontro às baionetas dos soldados!

Glória aos que tombaram
Por um ideal de vida mais humana e sã!
— Em sua trajectória indefinida,
Por mais que a vida tombe, ou que se roje,
A vida é chama eternamente renascida...

— E em seu ansioso, doloroso afã,
As vidas apagadas de hoje
Podem ser os clarões da vida de amanhã!

(Carlos de Moraes)


Aleluias
Sonetos
Carlos de Moraes

Editora
Casa Editora Violeta Primorosa 
Ano de Publicação
1925
Idioma
Portugues
Num. Paginas
145


12 dezembro 2018

Hoje invadiu-me a nostalgia

(texto da minha irmã mais nova)

Hoje invadiu-me a nostalgia. Talvez tenha sido o nevoeiro o responsável.Dizem que faz mal aos ossos - o nevoeiro, não a nostalgia, claro.
Em criança adorava o nevoeiro.
Eram dias de um fresco/suave. Ficava como que numa terra de esconde-esconde. Quanto mais cerrado mais interessante. Na minha mente não havia lugar para males de ossos, acidentes de viação...nada disso. Às vezes sentia-me quase invisível – tive sempre uma fértil imaginação.
Cheguei a imaginar-me num mundo de nevoeiro. Tentava fazer desenhos no ar, como o fazia na vidraça embaciada, mas não surtia qualquer efeito.
Era um tipo de algodão doce imaginário. Apetecia-me pegar em pedaços e degustá-los suavemente, ficando com aquela agua doce na boca até ele se desfazer. Depois, discretamente limpava os dedos ao vestido, não sem antes os ter lambido muito bem, não fosse perder-se algo. A seguir vinha a sede louca fruto do excesso de açúcar.Com sorte, talvez me dessem um gelado (sorvete) de banana. Idolatro o chocolate, mas aqueles gelados... eram assim um misto de leite com banana - tipo batido - mas em gelado, e de uma textura aveludada. Deveria ser proibido perderem-se esses sabores que nos marcam a infância.

Também deveria ser proibido ficarmos órfãos.

(para os meus pais, com saudades)

a.


07 outubro 2018

Primeiro dia de escola

...faz hoje anos que eu fui pela primeira vez à escola. tinha apenas 6 anos e o meu pai teve que tirar uma licença para eu poder entrar, pois só quem tivesse 7 anos entrava na 1ª classe. ia bastante apreensiva, pois nao sabia o que ia encontar pela frente.
fui com o meu pai, com uma bata cor-de-rosa impecavelmente passadinha a ferro e com um grande laçarote no cabelo. quando lá chegamos fomos recebidos pela minha professora, a quem o meu pai me entregou com as seguintes palavras que até hoje nao esqueci: "dona maria da luz esta é a minha filha, se ela se portar mal a senhora "dê-lhe" que aqui na escola é a senhora que lhe dará a educaçao!"
realmente "apanhei" muito, era traquina, mas NUNCA por nao saber, pois fui sempre uma boa aluna...

18 agosto 2018

partida

18 Agosto 1951

Ingrata esta vida, que nos faz amar e partir.
Mas que seríamos nós sem o amor? Que seríamos nós sem as memorias afectivas?
Recordar-te-ei para sempre - quando ouvir as rolas, os sinos da igreja, as Pascoas e os Natais.
Saudades dos que planam na linha do horizonte.
Saudades de ti já.

(para Olguita)
com carinho
a.


02 julho 2018

O Doutor "Prata" António Carlos Ferreira Soares

DOUTOR PRATA

O Dr. Antonio Carlos Ferreira Soares nasceu no dia 5 de Fevereiro de 1903 em Viana de Castelo, no seio de uma família distinta. Quis o destino que o “Dr. Prata” (como era conhecido pelos populares) vivesse num período marcado pela limitação da liberdade. Médico de formação, as suas qualidades transcendiam a do simples terapeuta que tratava os doentes. A sua vontade de liberdade e capacidade de escrita encaminham-no para a Revista Seara Nova, principal meio de divulgação das ideias anti-salazaristas. A 22 de Setembro de 1936 assume-se finalmente como lutador pela liberdade. Certamente foi uma decisão extremamente reflectida, já que as consequências desta decisão eram terríveis.A partir deste momento passa a ser alvo de perseguição e a clandestinidade é a única solução. Viver na clandestinidade significa perder a família, o nome, a casa e a tranquilidade. Nestes primeiros anos de ditadura, a perseguição a opositores do regime é tremenda.
Todos os que expressam opiniões divergentes das de Salazar são condenado à prisão e mesmo à morte. Os seus esconderijos favoritos localizavam-se na freguesia que o viu crescer como Homem de ideais democráticos. Um dos locais era a Igreja da freguesia. O pároco Abel escondia o amigo. Outro dos locais prediletos de refúgio era a Japoneira do cemitério de Nogueira da Regedoura.
O “Dr. Prata” tinha o dom da palavra. Numa manhã de Fevereiro de 1940, no funeral de uma jovem de 22 anos, o Dr. Carlos Ferreira Soares provoca um sentimento de revolta nos populares. As lágrimas e os aplausos misturam-se quando o Senhor doutor explica que as razões da morte desta jovem. A fome e a miséria que este regime implementou às populações mais desfavorecidas. Quando a Polícia política chega já o “Dr. Prata” tinha fugido. Mesmo na clandestinidade o médico prestava apoio às populações. Era médico na Associação Fúnebre de Socorros Mútuos de Grijó e fornecia medicamentos gratuitos. Esta vontade de ajudar levou-o à morte. Os seus disfarces duravam pouco tempo. Certa noite, dois agentes disfarçados de vendedores de cera aparecem numa mercearia vizinha da Associação. Questionam um jovem, que por lá estava, sobre os médicos que prestavam serviço na Colectividade e conseguem todas as informações que necessitavam.
Poucos dias depois, seis agentes estavam, ingenuamente, nas imediações da Associação. Tanta gente desconhecida numa terra pequena levantou suspeitas e rapidamente a população percebeu o que se estava a passar. O Dr. Carlos refugia-se rapidamente na casa mais próxima.
Não teve a mesma sorte no dia 2 de Julho de 1942. Foi morto com vários tiros de metralhadora à queima-roupa.
A Japoneira foi cortada. Nogueira da Regedoura estava de luto. A rede da Polícia Secreta funcionou outra vez. Mais um lutador pela liberdade se calava às mãos do Regime Salazarista. Muitos outros haveriam de morrer. Nos próximos tempos sairá um livro bastante completo sobre a vida deste lutador escrito pelo Dr. Armando Silva, co-autor da Monografia de Nogueira da Regedoura. O mais grotesco nisto tudo é que ainda existem portugueses (e muitos) que votam em Salazar como o maior português de sempre.



Logo após o assassinarem a PIDE, deixou o corpo numa casa de saúde, enquanto festejava numa pastelaria da rua 19 em Espinho “Ponto Chic”, onde o dono Elias Tavares abriu garrafas de champanhe celebrando com a PIDE ente gargalhadas e gritos “morte aos comunistas!”
Há testemunhos vivos. O camarada Russo o garoto das mensagens, actualmente com 78 anos e mantendo ainda hoje “tudo na cabeça sem se esquecer”, para além da família, vizinhos, camaradas e amigos. O povo em Nogueira da Regedoura e Espinho, quando soube do assassinato gritava entre soluços: “MATARAM O MEDICO DOS POBRES!” Não são histórias, muito menos mitos!
A História do PCP foi/é feita, com homens e mulheres de honra, Resistentes. Ainda hoje, nos devemos curvar pelo respeito que nos merecem! Felizmente, muitos desses Heróicos Resitentes estão vivos, para nos poderem contar! É o branqueamento do fascismo que estão a fazer. Este governo, agradece!


O livro, completamente esquecido, de A. Ferreira Soares, Casa Abatida , reeditado pela Guimarães nos anos cinquenta (?), tem uma dedicatória "à memória do seu filho o médico Antonio Carlos Ferreira Soares". Não é comum um pai dedicar um livro a um seu filho adulto, nem que este o seja à "memória", ou seja a um morto. Mas António Carlos Ferreira Soares não morreu de morte natural, mas sim assassinado pela PIDE em Julho de 1942.

(O Dr. Antonio Carlos Ferreira Soares era primo do meu pai, 14 anos mais velho)


FADO DA JAPONEIRA

I
Japoneira, Japoneira
Do cemitério de Nogueira
São meigas tuas folhinhas
Estás caladinha e não ralhas
Diz-me entao quem agasalhas
Debaixo dessas ranquinhas!
II
Ó japoneira querida
Por todos és conhecida
É tão triste a tua ausência
Tu, japoneira com dores
Vais deitando tuas flores
Em cima da inteligência.
III
Os teu botões cor de ouro
Quis ter aos pés teu tesouro
O que abraçou rico e pobre
E tu, linda japoneira
Vais com as raízes à beira
Do berço da alma nobre!
IV
As tuas flores encarnadas
Sao lagrimas orvalhadas
Sempre a cair nesse chao
Sao tao brandas e tao belas
Que o povo tem o mais delas
Metidas no coraçao
V
Ó raíz que vais andando
Por sobre terra mimando
Quer-lhe chegar com as pontinhas
Ao amigo que eu conheço
Faz-me o favor que eu te peço
É dar-lhe saudades minhas
VI
Ó raparigas casadas
Que vos achais magoadas
E o coração em pedaços
Lembrai-vos dessas mãozinhas
Tantas mães e criancinhas
Foram salvas nesses braços
VII
Ó noites amarguradas
Tantas delas pernoitadas
À sombra do acipreste
Às vezes fico a pensar
Que ainda has-de gozar
O bem que por cá fizeste
VIII
Essa tragédia hedionda
Onde oculta a negra sombra
Nao deixeis de ir a Nogueira
Ide ver as flores bonitas
Quando vos vires aflitas
ide ao pé da Japoneira
IX
Ó Pedreira da Murraça
Que nao vejo o que te faça
Dou-te todo o meu prestigio
Tantas noites tantos dias
Fugindo ao inimigo
Foste o meu esconderijo
X
O regime de um carrasco
Que para o povo foi mais fraco
Como diz o vocabulário
Eu aqui vos deixo dito
Que muito me vi aflito
Este pobre Apolinário
XI
Morre o rico, morre o pobre
Morre o berço da alma nobre
O morrer é uma carreira
Morre o homem da ciência
Morre a grande inteligência
Morre também a japoneira

(Apolinario Gonçalves)
Julho de 1942

***

Uma árvore à Beira do Caminho

Perto de Espinho havia uma árvore
havia uma árvore à beira do caminho
E havia um buraco naquela árvore
perto de Espinho.

(E o povo sabia que havia um buraco
naquela árvore à beira do caminho.)

Mas quando vieram os embuçados
à procura dum médico em terras de Espinho
o povo calou-se não disse nada.
(E o povo sabia que havia um médico
naquela árvore à beira do caminho.)

Esta é uma história que todos sabem
em terras de Espinho.
Esta é história duma árvore
à beira do caminho

Era noite cerrada noite negra
era noite de morte no caminho.
E de repente chegaram os embuçados:
procuravam um médico em terras de Espinho.

Era noite sem lua noite de emboscada
noite de um homem não andar sozinho.
Por isso o povo não disse nada:
era noite de embuçados no caminho.

Disseram ao povo que havia um ferido.
Mostraram as mãos: seria sangue? seria vinho?
E ninguém foi chamar o médico escondido
naquela árvore à beira do caminho.

Era noite sem lua noite de sangue
era noite de esperas no caminho
Embuçados chegaram. Embuçados partiram
Procuram um médico em terras de Espinho

Já corre um mensageiro para aquela árvore
à beira do caminho
Há embuçados. falaram dum ferido
Mas o sangue que vimos era vinho

Já o médico sai do seu buraco
naquela árvore à beira do caminho.
(Ai a noite sem lua
aí o sangue tem a cor do vinho)

Catorze balas o esperavam
catorze balas o mataram nessa manhã em Espinho
as mãos do povo vinham florir
aquela árvore à beira do caminho.

Mas todos os anos na mesma manhã
em que o sangue corre nessa aldeia de Espinho
as mãos do povo vinham florir
aquela árvore à beira do caminho.

Mas no dia seguinte no mesmo dia
em que havia uma árvore (perto de Espinho)
as mãos do povo vieram plantar
outra árvore à beira do caminho.

De quando em quando voltam os embuçados
e cortam a árvore do povo de Espinho.
Mas há sempre alguém para plantar
outra árvore à beira do caminho.

29 maio 2018

Fausto Neves

Oriundo de uma família com tradições musicais, Fausto Neves (neto do maestro Fausto Neves, autor da musica "Senhora da Paz" - Miraculosa) iniciou os seus estudos na Academia de Música de Espinho — sua terra natal — e completou-os no Conservatório de Música do Porto, na Universidade Laval (Canadá) e no Conservatório de Música de Genève (Suíça). Nesta última escola, concluiu o Prémio de Virtuosidade, aprofundou também os seus conhecimentos nos domínios da Música de Câmara e da Análise Musical e foi admitido no seu corpo docente. Discípulo de Helena Costa, estudou ainda com os pianistas Robert Weizs, no Canadá, e Harry Datyner, na Suíça.

Frequentou seminários com Sequeira Costa, Moura Castro, Josef Palenicek e Jörg Demus. Apresentando-se em público desde muito cedo, estreou-se como solista da Orquestra Sinfónica do Porto aos catorze anos, sob a direcção do maestro Silva Pereira. É convidado frequente das mais importantes organizações e festivais de música nacionais, tendo actuado ainda na Suíça, no Canadá, em Espanha, na França, no Brasil e na Itália, e gravado para a RTP, RDP e TV Cultura (Brasil). Colaborou ainda com os maestros Arpad Gerezs, Gunther Arglebe, Graça Moura, Álvaro Salazar, Kamen Goleminov e Marc Tardue. Dos inúmeros instrumentistas com quem colaborou em Música de Câmara destacam-se a violoncelista Gisela Neves (CD "Alla Danza"), o pianista Álvaro Teixeira Lopes e, integrando o quarteto de dois pianos e percussão, o pianista Pedro Burmester e os percussionistas Miguel Bernat e Manuel Campos.

A sua actividade docente desenrolou-se nos Conservatórios de Música de Sion e de Genève (Suíça), no Conservatório de Música do Porto, na Academia de Música de Espinho, na Escola Superior de Música do Porto, na Escola Profissional de Música de Espinho e na Universidade de Aveiro. Foi assistente da pianista Helena Costa nos Cursos de Música de Espinho e é solicitado frequentemente a reger Cursos de Interpretação e de Pedagogia Pianísticas em Portugal e no estrangeiro. Detentor do 1º Prémio do Concurso "Cidade da Covilhã", entre outras recompensas, é regularmente convidado a integrar júris de concursos nacionais e internacionais.



13 maio 2018

A Miraculosa

SÚPLICA À SENHORA DA PAZ

(Miraculosa)

Nossa Senhora, Mãe de Jesus,
Dá-nos a graça da tua luz.
Virgem Maria, Divina Flor,
Dá-nos a esmola do teu amor.

Miraculosa, Rainha dos céus
Sob o teu manto tecido de luz,
Faz com que a guerra se acabe na terra
E haja, entre os homens, a paz de Jesus. 

Nossa Senhora, Mãe de Jesus,
Dá-nos a graça da tua luz.
Virgem Maria, Divina Flor,
Dá-nos a esmola do teu amor.

Se em teu regaço, bendita Mãe,
Toda a amargura remédio tem,
As nossas almas pedem que vás,
Junto da guerra, fazer a paz!

Pelas crianças, flores em botão...
Pelos velhinhos sem lar nem pão..
Pelos soldados que à guerra vão...
Senhora escuta nossa oração!

Miraculosa, Rainha dos céus
Sob o teu manto tecido de luz,
Faz com que a guerra se acabe na terra
E haja, entre os homens, a paz de Jesus.

Almas no exilio da escravidao
Pedem auxilio da Tua mao 
E vao de rastos por toda a parte
De olhos nos astros, a procurar-Te!

Se a Tua Graça, por onde passa
Vence a desgraça mais desgraçada,
Nesta amargura que nos tortura
Põe a doçura duma alvorada!

Miraculosa, Rainha dos céus
Sob o teu manto tecido de luz,
Faz com que a guerra se acabe na terra
E haja, entre os homens, a paz de Jesus.

Fausto Neves (musica)
Carlos de Moraes (letra)

O original da musica está no Santuario de Fatima e foi entregue ha 32 anos por Mário Neves, filho de Fausto Neves




A minha prova da 4ª classe (1958)




29 janeiro 2018

a visita

(texto da minha irmã mais nova)

a visita

Sempre impecavelmente aprumada, outrora andaria numa azafama, entre a loja, que ficava na frente da casa, e os afazeres domesticos.
Recebia-nos com alegria, mas nao nos dava prioridade, primeiro estava o negocio.
.
Tudo estava irreconhecivel. Agora tinhamos que ultrapassar várias rotundas até chegar à aldeia. Foi bom a Ró ter ido comigo. Nas entrelinhas dos seus profundos suspiros de “ai-meu-deus”, dava-me instruções: vira aqui, vira ali - caso contrário ter-me-ia perdido.
O jardim da frente da casa também estava encurtado, por causa da estrada. Ainda bem que sobrara espaço para manter as roseiras.
Recuei no tempo.
.
Às vezes conseguimos recuar no tempo e ficarmos inocentes. Conseguimos imaginar que tinha sido bom ali. Noutra altura teria conseguido recuar até àquela tarde de férias de verão quente.
A igreja ainda era visível dali.
Sentamo-nos todos à roda de uma mesa no jardim. Havida limonada fresca, com água do poço. O som das rolas chegavam até nós, pena que o das galinhas também.
Os pátios tinham sido regados com água para tornar tudo mais fresco, Depois do fausto almoço, e sem vontade para lancharmos, havia quem já se atrevesse a elaborar a ementa do jantar. Depois de algumas sugestões eliminadas conseguiu-se reduzir o menu para uma salada russa (que iria ser servida bem fria) com uns filetes de pescada fresca. Para a sobremesa haveria pão-de-ló e melão fresco.
Fui muito feliz naquela casa.
.
Recuei no tempo e senti pesar.
Abrimos o portão, torneamos a casa.
A empregada tratava da roupa e disse – ela hoje está melhorzinha, já desceu mas subiu de novo.
.
Quando me viu, no seu ar canónico tentou esboçar um sorriso de alegria. Talvez até fosse um grande sorriso, já não tinha força para o transmitir por esgar.
.

(para O.)

a.



04 outubro 2017

Cheiros (parte I)

(este texto foi escrito pela minha irma mais nova)

CHEIROS (Parte I)

Não caíra o Governo de Salazar. Ele simplesmente morrera.
Levei de recomendações de casa para que,  quando chegasse, não contasse nada à Vóvó.
Finalmente os cheiros, caruma, eucalipto, o estrume do gado do vizinho…mas o melhor ainda estava para vir: o cheiro a leite fresco que de certeza ia ter à minha espera.
Era sempre agradável ir para a aldeia.
Adorava os cozinhados da minha avó. Ainda hoje recordo aqueles croquetes de batata (em alguns locais chamam-lhe trouxas de carne), douradinhos e acabados de fazer. Sentia-me uma princesa. A mesa girava à minha volta, ou melhor dizendo à volta dos meus paladares.
Não havia frigorífico, mas havia um compartimento muito fresco e cheio de prateleiras onde se guardavam os alimentos. Não havia supermercado mas sim a Herdade, onde tinha de tudo. Olhavam-me sempre de alto a baixo a fim de admirarem ora os meus olhos, ora o cabelo, ora o tom de pele (pois, a menina tem ido para a praia? – quem é? interrogavam-se – ah, é a mais nova da Lena de Espinho). A Herdade tinha um cheiro muito característico. Nunca encontrei ao longo da minha existência uma miscelânea de cheiros como lá. Era uma mistura de café acabado de moer-sabão clarim-açúcar refinado- bacias de plástico-marmelada-e outros que nunca soube identificar. Aqui também tinha uns maravilhosos rolos de chocolate maciço.
Para mim o dia era dividido em quatro: a manhã onde se respirava a frescura da noite, ao meio do dia com um calor insuportável e do qual nunca fui adicta, o maravilhoso fim da tarde onde às vezes me era permitido regar e podia molhar os pés em água fria sem levar um raspanete, e o anoitecer. Cada parte do dia tinha o seu cheiro. Ao fim da tarde também costumava ir para a cave (chamavam-lhe loja) andar no baloiço que estava pendurado nas traves da casa. Voava até as minhas tranças começarem a bater no tecto...a partir daí abrandava. Era um local bem fresco em contrapartida do calor de verão. Talvez a terra batida ajudasse àquela agradável temperatura.
Naquele tempo não deveria haver salmonelas, pois eu comia as gemadas que queria. Aliás, era uma obrigação a ingestão diária de gemadas.
No dia a seguir à minha chegada, tinha sempre por obrigação de ir às Cavadas, a casa da Fatinha, para me pesar. O objectivo da estadia na aldeia era de aumentar peso. Às vezes ia buscar a Nené a casa para irmos juntas – talvez fosse uma forma dela se distrair.


Era ja noite. Abri o portão, subi a ladeira, e ali estava ela estendendo-me os braços sempre tão carinhosos. Beijou- me. Senti um aconchego enorme naquele roçar de face na face e daquele hálito a maçã.

- Vóvó!!!!! O Salazar morreu!!!

bjs
a.

(para todos os que fizeram parte da minha infância)

26 agosto 2017

a casa dos titios

...quando o meu irmao nasceu, eu deixei de comer, talvez por ciumes, eu tinha apenas 1 anito e pouco A minha tia, que nao tinha filhos, mas tinha uma paciência levada da breca, começou a levar-me lá para casa e quando me entregava dizia: ela comeu e bem! e a minha mãe: nao entendo, ela aqui nao come nada... Foi assim que eu comecei a ir comer todas as noites a casa dos meus tios...

18 maio 2017

as minas de Volfrâmio

O VOLFRAMIO EM AROUCA


A quando da II Guerra Mundial (1939-45), Arouca transformou-se num "El Dorado" português.
Em virtude de haver grandes quantidades de volframio, sobretudo em Rio de Frades e em Regoufe, milhares de pessoas de todo o País deslocaram-se para Arouca, para aqui tentarem a sua sorte.
O volframio era essencial para o fabrico de peças de artilharia e era altamente disputado quer pelos aliados, quer pelos alemaes.
Salazar sempre fez um jogo duplo na exploração e na comercialização do volframio. Portugal não esteve envolvido na II Guerra Mundial devido ao volfrâmio e à manhosa "neutralidade activa", praticada por Salazar.
Em Arouca, Salazar deu concessões mineiras aos ingleses em Regoufe e a 5 Kms de distância, em Rio de Frades, ficavam as explorações dos alemães, chefiados pelo germânico Kurt Dithmer e que era também o representante da empresa siderúrgica alemã Krupp.
Em Arouca, para os dois beligerantes em conflito, apenas interessava extrair o maior nº de toneladas de volfrâmio. Não consta que tenha havido conflitos entre eles, nos encontros ocasionais nas ruas da Vila.
Quer os ingleses, quer os alemães construíram estradas para permitir o escoamento do minério extraído. Construíram também bairros sociais para alojar os mineiros, sendo as condições de habitabilidade dadas pelos alemães muito superiores às concedidas pelos ingleses.
O preço do volframio dependia do curso da guerra. A partir de 1943, sobretudo depois do "dia D" (desembarque na Normandia), as coisas começaram a pender para o lado dos aliados e os preços do volfrâmio começaram a descer. No período de maior procura chegou a vender-se minério a 1.500$00/kilo, tendo descido para 300$00.
No entanto, até esse ano, ganharam-se verdadeiras fortunas, quando se tinha a sorte de encontrar um bom filão.
Como era dinheiro ganho dum dia para o outro, também desaparecia rapidamente.
Cometeram-se autênticas loucuras: acender cigarros com notas, analfabetos compravam canetas Parker para trazer no bolso do casaco com um lencinho, usava-se um relógio em cada pulso, ia-se tomar café ao Porto, de táxi, porque o café em Arouca estava cheio e demorava muito tempo a servir.
Nesse período da guerra fez-se também muita contra-informação, sobretudo em Lisboa, no tocante a carregamento de volfrâmio em barcos. Os navios mercantes eram carregados de pedra, para um determinado destino, avisavam-se os inimigos, os barcos eram afundados e os exportadores ficavam a lucrar verbas astronómicas.
Em Arouca, ficou a memória dum tempo em que os mineiros não quiseram perder a oportunidade de serem ricos por um dia, de dormir em hoteis de luxo com companhia, de cometer extravagancias e maluqueiras de toda a espécie, de gastarem fortunas em jantaradas no Porto, em comprarem fatos bem feitos na Casa Inglesa, em terem aventuras com mulheres e terem gasto somas apreciáveis no jogo.
Neste momento, as concessões mineiras estão abandonadas, as construçoes estão praticamente todas destruídas e as maquinas das lavarias retorcidas.
O "El Dorado" terminou há 60 anos, em Arouca...



As minas de volframio de Arouca constituem património da arqueologia industrial que estão ainda ao abandono a aguardar urgente intervenção.
Rio de Frades e Regoufe são hoje dois lugarejos perdidos nos confins da serra, ambos situados em locais paradisíacos, que constituem um dos mais ricos patrimónios naturais do concelho, a merecer o tratamento adequado, no sentido de perpetuar na memória, um tempo de grandezas e misérias de um povo que aí buscou fortuna e encontrou quase sempre a glória efémera.
No lugar de Rio de Frades podemos ver ainda, em bom estado de conservação as muitas construções edificadas pela Companhia alemã, para alojar os muitos mineiros e também para os escritórios da empresa que durante cerca de cinco anos aí se dedicou à exploração de volfrâmio.
No lugar de Regoufe, para além da minas ainda em bom estado de conservação há todo um conjunto de edifícios que importa preservar, nomeadamente para fins turísticos, mas sempre sem alterar a traça original e preservando os espaços envolventes, para que se não perca a memória e o inestimável património que marcou profundamente a geração que atravessou os anos da Segunda Guerra Mundial.
As construções existentes no lugar de Regoufe, feitas pela Companhia inglesa, são bem mais simples que as edificações alemãs de Rio de Frades, mas, umas e outras merecem urgente intervenção, para que as intempéries e o abandono, façam com que se percam irremediavelmente.

Tio Ze de Macieira


tambem trabalhou nas Minas de Volframio

21 julho 2016

A Páscoa

(este texto foi escrito pela minha irma mais nova)

A Páscoa

O cheiro a fresias dilatava-me as narinas. Nos canteiros da Titia, espalhados pelas escadas e pelo corredor ladeado de flores, procurava os primeiros rebentos. Quando encontrava ficava deleitada. Inigualável aquele perfume. Fresco e suave, nostálgico até – jamais terei palavras para o definir.
Era o prenuncio da primavera e a Páscoa estava ali ao virar da esquina.
Primeiro vinha o Domingo de Ramos.
Neste dia levávamos à igreja um ramo com alecrim e oliveira para ser benzido no fim da missa das 10,00H.
Tudo era programado atempadamente.
A casa era limpa a fundo para receber a visita do compasso.
Cortinas, reposteiros, janelas… tudo era passado a pente fino.
As carpetes e tapetes eram lavados no grande tanque e o chão depois de minuciosamente esfregado era encerado. Quando a cera secava puxava-se o lustro. Ficaria lindo. O corredor brilhava logo de manhã quando entrava luz pelo quarto do Dito.
Havia ainda as cerimónias religiosas a que era obrigada a ir.
Nunca lhes achei muita graça, eram deprimentes, isso sim. Contudo, devo referir aqui dois aspectos que sempre me cativavam: as vestes cor de lilás e o cheiro a incenso.
Às 15,00H da Sexta-feira Santa deveríamos todos fazer um minuto de silêncio (às vezes emitia um som, muito baixinho, só para ver se me acontecia algo. Bah, continuava inteirinha, nada de novo acontecia. As minhas tranças continuavam no sitio, os meus joelhos esmurrados e o estúpido som das galinhas a cacarejar entrava pela casa.
Bom, passemos à parte que eu mais gostava: a cozinha. Adorava participar nas tarefas culinárias. A Ró batia as claras, a Lena e eu mexíamos as gemas com o açúcar e até o Dito ajudava na confecção dos cocos. Talvez por ser a mais velha cabia à Ró a tarefa de amassar o preparado para as bolinhas de chocolate. Invejava-a. Aquela tarefa deveria ser minha. Vá-se lá saber porquê mas nunca enjoava doces. (era quase obrigatório fazer-se: bolas de chocolate, quadradinhos de chocolate – feitos com a receita do bolo de noiva – bolo de coco, pudim francês, bolo de prata, bolinhos de coco, pão-de-ló, bolo de mármore, bolo mulato – conhecido entre irmãos pelo bolo leitoso – rolo recheado de geleia e talvez mais algum que não me ocorre agora).
Havia também regueifa da Páscoa, aliás havia sempre variadíssimos pedaços de regueifas da Páscoa, a mãezinha gostava de ter várias “amostras” da mesma. Tinham um sabor muito característico, talvez com um toque de Vinho do Porto.
Uma vez o paizinho e a Lena atreveram-se a fazer regueifa. Estava tão boa, mas tão boa aquela massa. Lindas! Ainda as vejo, por cozer, dispostas na mesa com tampo de mármore que havia na cozinha, já pinceladas de ovo e prontas para irem ao forno. Foi pena não terem desenvolvido. Conforme entraram, conforme saíram. Eram assim tipo umas regueifas anãs. Deu para rir apesar de todos lamentarmos o seu fraco, ou nenhum, crescimento. Porem, devo dizer que nunca comi regueifa tão boa.
A sala de jantar era preparada de véspera para a visita pascal.
A mesa grande era trocada por uma mais pequena para dar espaço à circulação do compasso. A “toalha da Páscoa”, imaculadamente branca, era então colocada.
No centro havia uma floreira em vidro, de cor salmão, com algumas flores e os verdes benzidos no anterior Domingo.
Havia os pratinhos rendilhados onde se colocavam amêndoas. Num deles ficava uma laranja golpeada com o folar para o padre. Noutro um pouco maior aparecia o Vinho do Porto e os cálices. Parte dos bolos eram cortados em fatias e dispostas em pratinhos. Lamentavelmente só podíamos comer os doces, depois do compasso passar.
Devo confessar que na noite Sábado para Domingo eu esgueirava-me até à porta da sala, fechada a sete chaves, e deliciava-me com bolinhas de chocolate. Não sei se alguém reparava, mas ficavam em numero idêntico ao que encontrava à entrada, só que um pouco mais pequenas.
Por fim vinha a excitação da entrada do compasso. A parte mais irritante era eu ter que beijar a cruz. Tentava sempre pôr a boca de lado para não lhe tocar – de relâmpago passavam-me sempre pela frente milhares de bocas sem dentes e de hálito suspeito.
Sobre o compasso, recordo ainda o som da sineta a aproximar-se (claro que às vezes era o simples sino que havia lá em casa e que alguém se lembrava de enganar a mãezinha, que toda aflita se aprontava de imediato a dizer: Eduardo, olha os verdes!!!! Espalha os verdes à porta!!!)

Para os meus pais e para os meus irmãos,
Com carinho
a.


(a última Páscoa em Cesár)

18 julho 2016

cresci

...naquela noite,  quando me meti debaixo da mesa da sala de jantar como habitualmente fazia, enquanto a titia ia à cozinha buscar a sopa, estava longe de imaginar que ao levantar-me iria bater com a cabeça no tampo.

a partir dessa data comecei a ter que me esconder de joelhos: tinha crescido e ninguem me avisou!

25 maio 2016

A Olguita

(texto da minha irmã mais nova)

A Olguita

Saíamos sempre, ao domingo. Afinal, morávamos numa cidadezinha turística.
Mesmo durante a semana, não era estranho irmos até à beira-mar, onde o picadeiro enchia na zona de verão.
A música tocava na Av. 8, emitida a partir de uma cabine de som. Scott Mckenzie convidava-nos a partir até S. Francisco ao lado de uma Gigliola Cinquetti que jurava a pés juntos "Dio como ti amo".
Roberto Carlos, entre outros estava no auge.
Um dia rezei para que ele me viesse buscar. Não disse nada a ninguém, para não dar azar e esperei por ele. De certeza que esperei sentada, caso contrário tinha feito varizes pelo corpo todo.
Nunca íamos com qualquer roupa para o picadeiro.
Quer de Inverno quer de Verão, deveríamos vestir a rigor. Mas no Verão era tudo mais bonito. Pelo Sol e pela roupa mais alegre.
Muitas vezes ía para Cesár passar as férias e "os" de lá vinham para cá.
A Fatinha, a Nené e a Olguita eram visitas assíduas na época balnear.
Traziam sempre imensos víveres, além da bagagem pessoal.
Lembro-me da bagagem da Olguita. Era sem dúvida a maior – digna de uma actriz de cinema.
- Para que queres essa porcaria toda? - perguntava eu?
- Nem é muita coisa…
Eu olhava para aquelas malas……Era cintos diferentes para cada toilette, sapatos, lenços, blusas, casacos…para não falar nos cremes. Para o Sol, para o dia, para a noite, para as rugas... credooooo - pensava eu, que passava bem com as minhas calças de ganga.
Antes de sairmos ela escovava 50 vezes o cabelo para ficar a brilhar. Tinha que esperar sempre por ela.
Depois…depois…valia a espera.
Orgulhava-me que todos olhassem para ela.
Orgulhava-me de a ter como prima.

a.

(para a Olguita, com todo o meu carinho)



25 abril 2016

Dia D

(mais um texto da caçulinha) 

Dia D

Era um prazer a visita da D. Angelina. 
Foi triste quando ela foi morar para Coimbra, mas a Alicinha tinha sido colocada em Coimbra para o estágio de medicina e seria tudo mais fácil. Agora me lembro, a Alicinha costumava sentar na cama o esqueleto, que lhe servia de estudo. 
A D. Angelina tinha uma voz muito agradável, e era uma boa contadora de histórias. Deliciava-me a ouvir episódios ora de Lisboa, ora de Carcavelos e até da Maria do Mar, filha de uns amigos lá de Lisboa. 
Gostava de ir a casa dela. Tinha uma gaiola, para mim gigantesca, cheia de periquitos. Era de um formato cilíndrico e terminava em cone. Encantava-me os sons daqueles pássaros. Ah, lembrei -me agora da vasta colecção de caixa de fósforos do Sr. Mário. Muitas delas tinham sido trazidas das colónias enquanto prestava serviço militar. 
Graças a ela, os estufados passaram a ser feitos num relativo curto espaço de tempo, com a introdução da panela de pressão. A mãezinha rendeu-se ao efeito mágico deste utilitário doméstico. Ficou tudo muito mais simples, se bem que de vez em quando fosse necessário dar um jeitinho à tampa da panela para a mesma funcionar. 
Às vezes vinha passar uns dias lá a casa e, se o sr. Mário estivesse de serviço viria ter com ela no fim de semana. Eram dias de azáfama doméstica diferente. 
Tinha chegado há dois dias. 
Quando acordei preparei-me para a escola e enquanto tomava o pequeno almoço, fui surpreendida por um burburinho. Algo se passava. Estava tudo com o ouvido colado ao rádio. 
- D. Helena, vou fazer as malas e parto no próximo comboio. Não sei se ele estará bem – o sr. Mário tinha o posto de major, e ela receava por ele 
Entretanto o paizinho, que já tinha saído há muito, voltou a casa e disse: 
- Nada de ajuntamentos. Se virem ajuntamentos afastem-se. 
Eu queria compreender a situação. Sabia que tinha havido uma revolução, mas nada mais sabia. 
Na escola foi-nos explicado o que se passava por uma professora: 
- Portugal vivia num regime fascista. Só havia uma opção política e quem fosse contra era torturado e preso. Ao longo destes dias, ser-vos-á explicado melhor, quer em casa, quer aqui na escola. Podem sair. Podem ir para a rua para comemorarem a Liberdade. 
Não se metam em confusões. Ser livre não é fazer tudo o que queremos. Não temos direito de ir contra a liberdade do outro. Temos o direito a partir de agora de lutarmos pelos nossos ideais. Não estranhem se virem alguns dos vossos professores, pelas ruas de Espinho gritando liberdade. Eu vou estar lá. 
Nada voltou a ser igual. 
Um dia o meu filho perguntou-me como era Portugal antes do 25 de Abril. 

Respondi: era a preto e branco 

Para os meus irmãos, 
Com carinho 
a.

15 agosto 2015

Mãe Mila

Morreu a "Mãe Mila" 

A sra. Emilia cuidou dos seus filhos e dos filhos das vizinhas enquanto elas iam trabalhar.
Não tinha curso nenhum, mas também nunca constou q houvesse problemas com as crianças.
De uma extrema bondade, comecei a admirá-la  desde criança e, ainda mais quando vi o marido ( q tinha ido para Venezuela e de vez em quando vinha passar umas férias e ostentar um grande carrão, como se isso fosse de grande importância na sua minúscula vida) dar-lhe uma grande sova e pontapeá-la pela rua 5 abaixo, estando ela grávida da filha mais nova.
Há 60 anos ninguém se metia porque ainda vigorava  aquilo "entre marido e mulher não metas a colher" e, se todos criticavam por trás e tinham pena dela, poucos se aventuravam a meter-se no meio dos dois.
Nunca me saíram essas imagens da cabeça, nem sequer quando a fui visitar, com a minha tia, à Misericórdia velha na rua 8, pois tinha nascido a cachopita, estava num bercinho aos pés da cama da mãe, olhei para ela espreitei bem e depois disse à minha tia quando viemos embora:  "tadinha" tão pequenina e já apanhou antes de nascer. :(

Adeus  "Mãe Mila" a gente um dia encontra-se do outro lado do caminho...


28 maio 2015

O Paizinho

(texto da minha irmã mais nova)

 O Paizinho


Ainda hoje exibo orgulhosa a pequena fotografia a preto e branco.

Ele já tinha cabelo, quase todo, branco, e eu ainda na escola primária andava.

Gostava de o ter conhecido com o cabelo às ondinhas. Um galã. Um autêntico artista de cinema.

Nunca mais esqueci o dia da foto. De mão dada, seguia altiva. Tínhamos ido à missa à Capela da Nª Sª da Ajuda. Depois fomos ver o mar, e foi aqui que apareceu o inesperado fotógrafo.

Pena ser a preto e branco. Levava metade do meu cabelo apanhado no alto da cabeça, onde era notório o grande laçarote branco. O vestido era rosa bebé, com umas aplicações, desde os ombros até à zona do umbigo, onde passava uma fita de seda igualmente rosa. Levava ainda um casaco de malha quente e de cor azul clara, feito pela mãezinha. Os sapatos eram pretos e de verniz, enfiados numas límpidas meias brancas.

Gostava de ver as fotografias a preto e branco que eram guardadas no álbum. Apresentava sempre um ar charmoso – os ossos ainda não se queixavam. Tinha realmente ar de galã, talvez tivesse sido assim que teve frutos na conquista do seu amor.

Um dia contei-lhe que em tempos tinha imitado a sua assinatura, para ele não ver as más notas da escola. Sorriu. O meu desabafo foi uma maneira de me redimir. Também lhe contei daquela vez, em que estando em casa sozinha com o Dito, distraímo-nos e começamos a jogar à bola. Azar, acertei em cheio no relógio de parede, que caiu – já não há relógios assim, pois não sofreu muitos danos. Até àquela data sempre pensou que o relógio tinha caído por desleixo do prego.

Quando me cabia a mim, a vez de limpar o pó no quarto deles, abria a porta do guarda-fatos e perdia-me entre o cheiro da roupa domingueira, sempre perfumada.

Foi muito bom tê-lo como pai – jamais o trocaria.

Foi bom vê-lo como avô.

(para os netos do meu pai)
com carinho
a.



13 maio 2015

1ª Comunhao

13 Maio 1955

Hoje é o dia da minha 1ª Comunhao. Nao tenho fotos do evento porque na altura nao havia dessas "chiquezas". Fui com um horroroso vestido cinzento com umas riscas coloridas, embora tivesse um lindo vestidinho branco. Mas como a Maezinha estava nas Termas de Monte Real e tinha deixado indicaçoes à Titia para eu "estrear" aquela "tripa", nao adiantou nada eu dizer que o Sr.Abade tinha pedido que quem tivesse vestido branco para levar. Disse ela: a tua Mae antes de ir disse para levares este vestido por isso é esse que vais levar, nao vou contra o que ela disse (porra, mas porque é que ainda nao existiam telemoveis naquela altura???)

Penso bastante nisso quando vejo a importancia que se dá de hoje em dia ao evento, nao a nivel religioso, mas comercialmente. Ha pessoas que se empenham para fazer a festa, que gastam o que têm e o que nao têm, que ficam a dever ao restaurante, mandam fazer roupinha nova e nao pagam... enfim, fazem a festa mais para os outros verem, que para eles mesmos.

A festa está dentro de nós, é verdade, mas que eu podia ter levado o meu vestidinho branco em vez daquela "tripa cinzenta" tambem é verdade verdadinha.


29 maio 2014

ó mãezinha, eu hoje nao choro!

...como fazia bem tomar banho de mar de manhãzinha, para termos menos gripes no Inverno, lá íamos nós, bem cedinho até à praia.
Naquele dia resolvi que não ia chorar quando o "banheiro" nos desse os 3 mergulhos forçados no mar.
Entao quando a minha mãe nos estava a arranjar em casa, eu comecei com uma lenga-lenga: "ó mãezinha, eu hoje nao choro!" "ó mãezinha, eu hoje nao choro!" devo ter dito o mesmo mais de 20 vezes.
O pior foi quando ao dobrar a esquina da rua se viu o mar: fiz outra vez semelhante berreiro que só parou como de costume, quando a minha mãe nos serviu o leitinho quente com cevada, levado na garrafa termos e o pãozinho com manteiga e aquele "banheiro" já estava bem longe...